sexta-feira, 9 de março de 2012

Olhe sempre o lado bom da vida



Terry Gilliam sempre foi estranho. Nasceu americano e adquiriu a cidadania inglesa, diferente dos demais integrantes do brilhante grupo de humor da Inglaterra, todos britânicos de nascença. Era inicialmente apenas o responsável pelas famosas animações do programa de tevê de sucesso - só depois de um tempo apareceu em pequenas participações nos esquetes. Seu talento como diretor nunca foi contestado pelo grupo durante as filmagens de "Em Busca do Cálice Sagrado", apesar de ter sido preterido para dirigir os outros filmes do Monty Python pela sua visão mais tecnicista, mórbida e macabra.

Mas o problema é que ele sempre foi muito estranho.

E nem podemos discordar! Terry Gilliam é o autor de filmes ótimos e esquisitaços como "Brazil", "Fear and Loathing in Las Vegas", "Pescador de Ilusões", "Barão de Munchausen", "Os Doze Macacos" e por aí vai. Agora, o troféu de filme mais estranho vai para quem? Ora, para "Contraponto" (2005), a estranha exumação de hoje. Essa produção fracassada e detestada por crítica e público - e os caríssimos leitores logo perceberão o motivo - é um dos filmes mais bizarros, subversivos e grotescos da minha coleção!

É sabido que os sonhos e a imaginação são temas centrais nas obras do Terry Gilliam, seja num flashback das aventuras de um velhinho insano com título de barão ou na válvula de escape para um sujeito preso em um mundo "futurista-retrô" distópico...  mas em "Contraponto" é diferente. A fantasia é a única forma de defesa da mente de uma pobre garotinha contra os horrores de uma realidade tenebrosa.

Por onde começar? Assistinos o filme pelos olhos poeticamente inocentes da menina, e talvez por isso a indignação de tantos espectadores: ela não tem noção de metade das desgraças por que ela passa. A criança é filha de dois viciados em heroína - é ela quem prepara as doses pro pai, algo tão corriqueiro quanto lavar os pratos! - e quando os dois morrem, ela está sozinha numa fazenda abandonada. À morte e às drogas, soma-se ao repertório de horror a fome, a solidão (que ela tenta contornar conversando com quatro cabeças de bonecas e um esquilo) e um dos tabus mais controversos da sociedade (e do cinema, portanto): a pedofilia.

Existe um momento em que o irmão retardado epiléptico lobotomizado (!) da vizinha, uma bruxa cega taxidermista com fobia de abelhas (!?), tenta partir pros finalmentes em cima da menina indefesa. Ambos têm a mente infantil e desconhecem o sexo, apesar do retardado ser um homem adulto - mas quem está assistindo sofre com o destino da garota. O nível de tensão dessa cena é absurda, é o clímax do filme pra mim, em comparação com outras partes grotescas e controversas dessa que é a obra mais macabra do gênio surreal do Monty Python.

"Contraponto" é pesado, mas tem cenas muito bonitas (a nossa "Alice no País das Maravilhas" às avessas enfeita a realidade horrenda com suas fantasias) e é de um humor negro inigualável: desconheço outro filme que faça piada com a confusão dos barulhos dos gases exalados por um cadáver em decomposição com a flatulência nossa de cada dia!

Recomendado pra quem aprecia humor negro, controvérsia e temas grotescos. Para aqueles que acham que a sua própria vida é ruim, esse festival de bizarrices ajuda a colocar as coisas em perspectiva! O que dizer mais de um filme cujo "final feliz" acontece em meio a uma tragédia com centenas de mortos e feridos?

Trailer de "Contraponto" (2005)

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